Sabia que até a lembrança do
piano falseava ainda o plano em que via as coisas da música, que o campo aberto
ao músico não é um mesquinho teclado de sete notas, mas um teclado
incomensurável, ainda quase completamente desconhecido, onde apenas aqui e ali,
separadas por espessas trevas inexploradas, algumas dos milhões de teclas de
ternura, de paixão, de coragem, de serenidade que o compõem, cada qual tão
diferente das outras como um universo de outro universo, foram descobertas por
alguns grandes artistas que, despertando em nós o correspondente do tema que
encontraram, nos prestam o serviço de mostrar-nos que riqueza, que variedade
oculta, sem o sabermos, esconde essa grande noite indevassada e desalentadora
da nossa alma, que nós consideramos como vácuo e nada. Vinteuil fora um desses músicos. Na sua pequena frase, embora apresentasse à
razão uma superfície obscura, sentia-se um conteúdo tão consistente, tão
explícito, ao qual emprestava uma força tão nova, tão original, que aqueles que
a tinham ouvido a conservavam em si no mesmo plano que as ideias do
entendimento. Swann se reportava a ela
como uma concepção de felicidade e do amor e cuja peculiaridade sabia ele
imediatamente tão bem que consistia,
como o sabia quanto à Princesa de Clèves
ou a René, quando esses nomes se lhe
apresentavam à memória. Mesmo quando não
pensava na pequena frase, ela existia latente em seu espírito, da mesma forma
que algumas outras noções sem equivalente, como as noções de luz, de som, de
relevo , de volúpia física, que são as ricas posses com que se diversifica e
realça o nosso domínio interior. Talvez
as percamos, talvez se extingam, se voltarmos ao nada. Mas, enquanto vivermos, e tal como acontece
no tocante a qualquer objeto real, não podemos fazer como se as não tivéssemos
conhecido, como não podemos, por exemplo, duvidar da luz da lâmpada que se
acende diante dos objetos metamorfoseados de nosso quarto, de onde se escapou
até a lembrança das trevas. Assim, a
frase de Vanteuil, como determinado tema de Tristão,
por exemplo, que nos representa também certa aquisição sentimental, havia
esposado a nossa condição mortal e adquirido algo de humano que era assaz
comovedor. Sua sorte estava ligada ao
futuro e à realidade de nossa alma, de que ela era um dos ornamentos mais particulares,
mais diferenciados. Talvez o nada é que
seja a verdade e todo o nosso sonho não exista, mas sentimos que então essas
frases musicais, essas noções que existem em função do sonho, não hão de ser
nada, tampouco. Pereceremos, mas temos
como reféns essas divinas cativas que seguirão a nossa sorte. E a morte com elas tem alguma coisa de menos
amargo, de menos inglório, de menos provável, talvez.
Swann não se enganava, pois, em
crer que a frase da sonata realmente existia.
Humana sob esse ponto de vista, pertencia no entanto a uma ordem de
criaturas sobrenaturais que nunca vimos mas que apesar disso reconhecemos
enlevados quando algum explorador do invisível chega a captar uma delas, a
trazê-la, do mundo divino a que ele tem acesso, para brilhar alguns instantes
acima do nosso. Era o que fizera
Vinteuil com a pequena frase. Sentia
Swann que o compositor se contentara, com os seus instrumentos de música, em
desvelá-la, torná-la visível, em lhe seguir e respeitar o desenho com mão tão
sensível, tão prudente, tão delicada e tão segura que o som se alterava a todo
momento, esfumando-se para indicar uma sombra, revivescendo quando era preciso
seguir um contorno mais ousado. E uma
prova de que Swann não se enganava ao acreditar na existência real daquela
frase, era que qualquer amador um pouco atilado logo se aperceberia da
impostura de Vanteuil, com menos poder para divisar e transmitir as suas
formas, houvesse procurado dissimular as lacunas de sua vista ou a inabilidade
de seus dedos, acrescentando-lhe aqui e ali alguns toques de sua própria
invenção.
(tradução de Mário Quintana)
(tradução de Mário Quintana)
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