terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Proust (entropatia) - Fragmento 2 de Um amor de Swann (No caminho de Swann - Em busca do tempo perdido)

Sabia que até a lembrança do piano falseava ainda o plano em que via as coisas da música, que o campo aberto ao músico não é um mesquinho teclado de sete notas, mas um teclado incomensurável, ainda quase completamente desconhecido, onde apenas aqui e ali, separadas por espessas trevas inexploradas, algumas dos milhões de teclas de ternura, de paixão, de coragem, de serenidade que o compõem, cada qual tão diferente das outras como um universo de outro universo, foram descobertas por alguns grandes artistas que, despertando em nós o correspondente do tema que encontraram, nos prestam o serviço de mostrar-nos que riqueza, que variedade oculta, sem o sabermos, esconde essa grande noite indevassada e desalentadora da nossa alma, que nós consideramos como vácuo e nada.  Vinteuil fora um desses músicos.   Na sua pequena frase, embora apresentasse à razão uma superfície obscura, sentia-se um conteúdo tão consistente, tão explícito, ao qual emprestava uma força tão nova, tão original, que aqueles que a tinham ouvido a conservavam em si no mesmo plano que as ideias do entendimento.  Swann se reportava a ela como uma concepção de felicidade e do amor e cuja peculiaridade sabia ele imediatamente tão bem  que consistia, como o sabia quanto à Princesa de Clèves ou a René, quando esses nomes se lhe apresentavam à memória.  Mesmo quando não pensava na pequena frase, ela existia latente em seu espírito, da mesma forma que algumas outras noções sem equivalente, como as noções de luz, de som, de relevo , de volúpia física, que são as ricas posses com que se diversifica e realça o nosso domínio interior.  Talvez as percamos, talvez se extingam, se voltarmos ao nada.  Mas, enquanto vivermos, e tal como acontece no tocante a qualquer objeto real, não podemos fazer como se as não tivéssemos conhecido, como não podemos, por exemplo, duvidar da luz da lâmpada que se acende diante dos objetos metamorfoseados de nosso quarto, de onde se escapou até a lembrança das trevas.  Assim, a frase de Vanteuil, como determinado tema de Tristão, por exemplo, que nos representa também certa aquisição sentimental, havia esposado a nossa condição mortal e adquirido algo de humano que era assaz comovedor.  Sua sorte estava ligada ao futuro e à realidade de nossa alma, de que ela era um dos ornamentos mais particulares, mais diferenciados.  Talvez o nada é que seja a verdade e todo o nosso sonho não exista, mas sentimos que então essas frases musicais, essas noções que existem em função do sonho, não hão de ser nada, tampouco.   Pereceremos, mas temos como reféns essas divinas cativas que seguirão a nossa sorte.  E a morte com elas tem alguma coisa de menos amargo, de menos inglório, de menos provável, talvez.

Swann não se enganava, pois, em crer que a frase da sonata realmente existia.  Humana sob esse ponto de vista, pertencia no entanto a uma ordem de criaturas sobrenaturais que nunca vimos mas que apesar disso reconhecemos enlevados quando algum explorador do invisível chega a captar uma delas, a trazê-la, do mundo divino a que ele tem acesso, para brilhar alguns instantes acima do nosso.  Era o que fizera Vinteuil com a pequena frase.  Sentia Swann que o compositor se contentara, com os seus instrumentos de música, em desvelá-la, torná-la visível, em lhe seguir e respeitar o desenho com mão tão sensível, tão prudente, tão delicada e tão segura que o som se alterava a todo momento, esfumando-se para indicar uma sombra, revivescendo quando era preciso seguir um contorno mais ousado.  E uma prova de que Swann não se enganava ao acreditar na existência real daquela frase, era que qualquer amador um pouco atilado logo se aperceberia da impostura de Vanteuil, com menos poder para divisar e transmitir as suas formas, houvesse procurado dissimular as lacunas de sua vista ou a inabilidade de seus dedos, acrescentando-lhe aqui e ali alguns toques de sua própria invenção.  

(tradução de Mário Quintana)