quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Ser Pai no Intransitivo

Se hoje me perguntarem por onde andei, direi:  "vendo meus filhos crescerem."  Já quis ser muita coisa.  Mas, só hoje sei quem sou.  Sou pai.  E isso basta.  Mas, o que é ser pai?  É ser para a morte.  Trocando em miúdo,  ser pai é pensar, apesar de toda angústia de nada mais ser, que vive e morre por, com e para seus filhos.  Se eu morrer antes de meus filhos, serei pai em assim ter pensado viver.  E minha vida e morte terão sido criadoras da memória em meus filhos de assim bem querer viver e morrer.  Mas, se algum de meus filhos morrer antes de mim, fechar-me-ei em luto e a angústia me tomará.  Mas, não serei infeliz na confortante lembrança de que ele pôde contar com o pai por todos os dias de sua vida.

Ser pai é assim:  inicia-se com vida nova, mas só se consuma na morte.  Só que a morte não é o fim de ser pai.

Meus filhos, eis-me aqui!  Ouvem a voz e fazem a vontade de seu pai!  Tomem-me por inteiro de mim mesmo!  Pois, sou quem sou, sendo, ao mesmo tempo, pai e filho de meu pai.  

Sicut erat in principio et nunc et semper et in saecula saeculorum. 


domingo, 2 de agosto de 2015

Economia da felicidade e a ética da gratidão




Uma nota característica do utilitarismo é a felicidade como o fim de toda utilidade.  Há dois séculos legitimamos a economia de mercado a partir desse postulado ético. Ultimamente, a felicidade está articulada com a sustentabilidade, de modo que a ética utilitarista também considera a felicidade de nossos filhos num retorno do moderno a uma preocupação arcaica de continuidade genealógica.  Só que esta continuidade é percebida não só na herança de direitos pessoais, patrimoniais e sociais, mas agora também está consubstanciada num comportamento individual correto para a consciência, porque esta, ao voltar-se para o coletivo, percebe a existência positiva de interesses difusos, nem que seja pela coatividade das normas jurídicas de proteção ambiental.


Mas, o utilitarismo também nos legou uma noção: a economia se manifesta nalgum sistema de trocas de bens.  Quiçá então seja um problema do utilitarismo exilar da economia um bem em sua absoluta gratuidade: a gratidão.  O exílio se dá exatamente na gratuidade absoluta:  a gratidão não conta.  E se não conta, não há utilidade para a gratidão suportada num objeto de troca.

A implicação ética desse exílio se positiva no sentido agora ordinário de sucesso na economia de mercado.  Se a qualificação de um empreendimento econômico se mede pela sua agregação de valor, a medida do seu sucesso se dá pela margem resultante em função de quanto dinheiro e quantas pessoas estão dispostas a pagar por essa agregação.

O problema é que tal medida tende a tornar o empreendimento, até mesmo por conta de toda responsabilidade social e ambiental exigíveis, potencialmente inflacionário, porque é um acelerador na circulação da moeda numa sociedade afetada pela insaciedade que só a gratidão pode aplacar num horizonte sabático de felicidade.

Quero ilustrar essa afirmativa a partir da vulgarização dos neologismos experienciação e desconstrução numa relação específica de consumo.  Em qualquer manual do empreendedor voltado para a gastronomia, o sucesso em desconstruir um prato de comida vai se traduzir na fazeção com que mais pessoas estejam dispostas a pagar mais caro para experienciar o seu consumo.

No Rio de Janeiro, essa vulgaridade mereceu nos seus dias de euforias eikeana e pressálica a criação jocosa de uma moeda alternativa: o $urreal. A criação do humor carioca apontou para a medida de sucesso dos empreendimentos gastronômicos que aceitam o convite utilitarista a um frenesi na circulação da moeda, uma vez que a felicidade é prometida na experienciação de serviços desconstruídos a preços surreais.  Isso se torna pressão inflacionária, quando vai acontecendo até mesmo com a pipoca vendida sem vergonha em cinemas plex qualquer coisa no bairro, ou com o pedaço de bolo que agora é cup cake na padaria da esquina de casa...  O utilitarismo é cego à questão ética aí, porque a encara apenas sob a perspectiva instrumental da oferta de crédito e dos custos de oportunidade.

Mas, o que a (ausência de) gratidão tem a ver com isso?

Em Roma, diante de porta discreta, havia um suporte que atraía pelo anúncio com preços de pasta  que eram competitivos com um Big Mac.  Fettuccini alla puttanesca, spaghetti all´alfredo, fusilli alle bolognese... enfim nada indicava qualquer experienciação. Desconstrução, muito menos. Mas, elas se insinuaram num pequeno cartaz visível logo que entrei no estabelecimento acanhado:  "Aqui se propõe uma experiência gastronômica.  Não espere por serviço."  Ora, a tabuleta contraria qualquer manual de empreendedorismo do Sebrae...  Eu fui ao balcão sem qualquer pretensão e pedi uma porção de massa e molho ao dono do lugar.  Ela foi servida num prato plástico descartável desses mais vagabundos, tipo de  servir bolo em parabéns na escola de meu filho.  E recebi um copo igual aos que ficam ao lado do bebedouro de qualquer escritório por aí. Bebida, eu peguei o vinho que queria.  Preço de água mineral.  E você me pergunta: e daí?  Aí, a massa... na primeira garfada apreendi com a língua o significado da tabuleta!  No paladar, não deixava nada a dever a qualquer restaurante estrelado em Roma. Quem já foi dono de restaurante sabe a trabalheira e a arte que é produzir um prato com aquela qualidade na degustação.   E o enorme desafio  um cozinheiro tem ao propôr uma experiência gastronômica marcante ao elaborar um prato com receitas ordinárias.  Qual o sentido de desconstrução?  Na proporção do sentimento de gratidão na relação de consumo que se estabelece com quem entra naquele estabelecimento.  Pelo preço que paguei para comer aquele prato divino de macarrão, nada mais podia fazer do que levantar-me da mesa e descartar o prato e o copo como um gesto não tanto de cidadão consciente do que seja politicamente correto, mas alguém sinceramente agradecido pela sorte de ter entrado naquela porta.    E isso seja economia.

Se tal empreendimento pode não parecer um exemplo didático de sucesso para um instrutor do Sescoop, a mim pareceu-me mais que legítimo.   Sobretudo porque vinha de uma missa que assisti casualmente na Igreja de São Luís dos Franceses num dia qualquer de semana.  Entrei e topei com afrescos de Caravaggio.  Mas, na missa, mesmo... tinham mais padres no presbitério do que leigos na nave!  Porque a igreja estava vazia, maravilhei-me com a alegria com que os padres estavam celebrando a Eucaristia.  Ao final, foram  cumprimentar e confraternizar com os poucos fiéis presentes.  Falavam francês, eles e os leigos. Eu entendia muito pouco do que diziam  Mas os sorrisos com que me dirigiam o olhar não deixavam dúvida da gratidão por eu ter-me sentado com eles lá.  Senti-me plenamente recompensado com o prato de macarrão que comi ao sair dali.  E eu, carioca, não pude deixar de imaginar que só numa metrópole com tanta profusão de arte sacra e missas, um dono de restaurante vai querer seu próprio sucesso na gratidão silenciosa de turistas anônimos como eu.