quarta-feira, 9 de julho de 2014

Vida que segue


Ontem não é um dia para ser esquecido. Assistimos mais do que uma partida de futebol. Assistimos a morte de um mito. O mito da camisa canarinho. Não haverá mais crianças na Mongólia sonhando em vestir essa camisa.


Quando o impensável se mostra para todos num único acontecimento, um mito morre. Só morre com um choque de realidade a que damos sentido de aniquilação. Já tivemos duas eras Dunga, até esperávamos uma derrota, mas aquilo que todos nós assistimos?! Ninguém. Era o mito que morria.

Mas, a vida segue hoje. É sempre a mesma humanidade que sobrevive na passagem dos mitos. Mas também é outra humanidade. Pois, num choque de realidade, algo estava oculto sempre aparece em nós para nós. A vivência de si mesmo como outro.

Muito significativo que o mito morra diante de alemães. Carregamos essa idéia de que, diante de alemães, somos pobres de espírito. Como nós construímos nossos estádios? Como eles constróem estádios? Como jogamos e eles jogaram futebol. No deles, a mortalmente eficiente disciplina tática. Eles são de uma riqueza espiritual mítica. 

Hoje, o que estava oculto apareceu. Apareceu a bem aventurança de ser brasileiro. Alemães, como nós, também tiveram um uniforme mítico. O seu símbolo não era uma cor estampada na camisa. Era de ferro forjada em cruz negra. Não, não estou falando da suástica, apenas um símbolo ideológico. O mito é a cruz de ferro. Em sua riqueza, os alemães elegeram um outro campo como único digno de seu mito. Não como nós, o campo de futebol. Mas, o campo de batalha. 

Bem aventurados os brasileiros, porque seu mito morreu enquanto assistíamos televisão comendo pipoca. Eles tiveram seu choque de realidade amontoados em abrigos antibombas. Desde abril de 1945, ninguém mais sonha em ganhar uma cruz de ferro. Acordamos hoje temendo impotentes e aniquilados a gozação a sofrer dos nossos rivais, se a Argentina for campeã em pleno Maracanã. Os alemães acordaram no dia seguinte aos bombardeios aliados temendo uma onda de estupros, se o exército de ressentidos vindos do leste vencesse em sua cidade. 

Bem aventurado eu sou, porque hoje pela amanhã, cruzmaltino, pude sorrir, quando, vindo pelas ruelas do centro para a minha vida de trabalho que me aguarda, ouvi o troar de um riso desdentado: "E aí, quanto foi mesmo o jogo do Mengão ontem?" 

O lado bom da morte de um mito é este: nos tornamos quem somos.

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