Há um tempo se meteu uma idéia na minha cabeça.
Era uma maneira diferente de devoção mariana, que envolvia o Cristo
Redentor lá no Corcovado. Dediquei muita
sola de sapato até obter o consentimento institucional da Igreja Católica para
colocar em prática o que imaginei.
E, na prática, não
saiu como imaginado. Tive uma vivência
que não supus. Algo que até sabia
possível... em teoria de ler teologia. Mas, não era o que me propunha realizar. Equívoco meu.
Nada de grandiloqüente
aconteceu. Mas, o extraordinário se deu eloqüente. Uma vivência da graça na dinâmica e potência em simplesmente agir com Maria para a Eucaristia. Algo que,
em memória, é assim: lá pelas tantas as
coisas já não saíam como imaginara, tinha de improvisar e precisei de ajuda de
uma pessoa estranha na rua. Eu o abordei
e contei-lhe o que estava fazendo, o propósito disso e pedi a ajuda que
precisava para ir ao Cristo no Corcovado.
Olhou-me, um marciano: eu, não ele, era o estranho. Ele se virou para um conhecido dele ali
próximo: "Eu não entendi nada do que esse cara aqui falou, mas é importante. Vem
cá!" Ambos me ajudaram e assim
foi com todo mundo com quem cruzei até que o corpo de Cristo se fez presente. Estava abismado: "Como isso foi
acontecer assim?!" Desde então, venho experimentando dessa devoção uma vez
por ano. Como até hoje não encontrei qualquer
explicação para essas conspirações que acontecem, uso uma expressão poética
para dizê-las: é o véu de Maria que me faz caminhar ao encontro do Cristo no Corcovado.
Conto isso, porque
nestes últimos dias, deu-se muita repercussão a reações indignadas contra a
Arquidiocese do Rio de Janeiro por ela ter desautorizado a imagem do Cristo
Redentor num filme. O fato já foi superado e a posição da Cúria sobre a peça, revista. Mas, ainda vale a pena pensar essas críticas feitas. Em comum, todas as
reações evocavam a liberdade de expressão e denunciavam um certo sentido de usurpação
pelo clero de uma expressão cultural da cidade a exigir a tutela do Estado
laico pelo bem da democracia. Mas, todas
também tinham em comum deixar de lado algo do Cristo no Corcovado. Esse Cristo não é o cavalo do Osório na Praça
XV. Não é um só um monumento citadino,
uma expressão mega e moderna de arte sacra ressignificada constantemente pelo
imaginário na sua presença notável em muitos planos paisagísticos da urbe e
assim reconhecível como patrimônio cultural coletivo da humanidade. Tornou-se tudo isso, sim. Mas, antes disso, já era e sempre foi um
santuário consagrado à Nossa Senhora da Conceição Aparecida. E não deixou de ser.
Num domingo de
carnaval, com o Cordão do Boitatá na praça, sob a bunda do cavalo do Osório,
assisti divertido a um simulacro bufo do sacramento de matrimônio. O amigo
fantasiado de padre estava para lá de animado!
O que é a liberdade?! A encenação era foliã, mas os noivos estavam
levando a sério a troca de votos que faziam ali. Uma paixão de carnaval que se
transformava em promessa de amor. Isso é
cidade e cidadania. Movimento e
criação.
Mas, um sentido
necessário de santuário não é nem movimento, nem criação. É preservação vital. No caso do Cristo no Corcovado, preservação
da fé católica, que conspira pela bondade para a cidade até sob a sombra da
bunda do cavalo do Osório numa manhã de carnaval.
Cinema não é só
liberdade de expressão. É indústria
cultural. Como indústria, tem suas
responsabilidades em preservar o que há de bom em torno de nós. Talvez no futuro haveremos de discordar da Arquidiocese em uma decisão de veto. Compreendamos o papel autônomo dela na tomada de decisões sobre o Cristo Redentor no contexto do
Estado laico. Há algo do Muro das Lamentações de Jerusalém no Cristo Redentor do Corcovado. E vamos esperar que mesmo havendo vetos, não haja tanto a se lamentar assim, porque até agora a ninguém
ocorreu de se explodir e explodir os outros em volta numa disputa em torno
dele.
Fecha o pano. Abre o pano.
Era vizinho do Palácio
das Laranjeiras e ia diariamente ao meu estúdio no Largo de São Francisco de Paula. Mesmo que não quisesse, muito de perto acompanhei
tudo que aconteceu. Os dias foram
passando e vi entristecido muitas marcas de maldade nas ruas onde vivia. Marcas de um modo de intimidação violenta que
fazia muito tempo não se via na cidade.
E no Largo olhava de soslaio conspirações sintetizadas numa frase
pichada no prédio onde trabalho: as idéias
voltam a ser perigosas.
Mudei-me para algumas
quadras do Maracanã e aí esperei a Copa.
E por mais violência nas ruas em que vivo. Mas, desta vez, uma surpresa. A polícia civil indiciou, o Ministério
Público denunciou e o juiz criminal decidiu.
Ainda que sujeitas ao habeas
corpus, as prisões ocorreram a tempo de desarticularem promessas de revolta,
quando há quem as queria expressas em
paixões rancorosas. Em que pesem mais reações
indignadas pela liberdade de manifestação, embargaram um projeto de
detonautas da cidade para o Maracanã. Doidos por um muro de lamentações sob as
vistas do Cristo no Corcovado.
Pode até ter sido
pouca a justiça nas prisões. Mas, este
pouco, quando falta, faz muita falta.
O que uma estória tem
a ver com a outra? A cidade, é claro.
Mas também as liberdades como espírito do tempo. Espírito este estampado na capa de uma
revista de celebridades que vi ontem no aeroporto do Galeão. Uma denúncia de racismo. Uma protagonista de novela da hora
contava: "Quando entro num restaurante, quem tem minha cor, ou está
servindo, ou está limpando. É o Brasil
que diz ser esse o meu papel: servir e limpar."
Lembrei-me então de
uma conversa. Coisa de padre. Assuntava querendo saber da minha vida. E, proseando, suspirei naquele dia. "Tenho
sentido um sabor... de não ter gosto.
Quero muito me orgulhar do que faço de mim e por mais que procure,
sempre acabo percebendo que o que fiz de melhor foi nas manhãs em que esfreguei
panelas sujas do jantar de ontem. E não dá para ter orgulho disso, né?". Naquele
dia, ele, desses que andam de batina negra até hoje ainda que esteja o maior
calor na cidade, abriu um sorriso raro e, olhando-me nos olhos, deu uma
palmadinha no meu ombro.