terça-feira, 13 de maio de 2014

Um voto de esperança para as cooperativas de trabalho é pedir muito?

No livro Eichmann em Jerusalém,  Hannah Arendt surpreendeu ao perceber o mal absoluto encarnado num mero servidor público, cioso de seu trabalho e aplicado em executá-lo de maneira mais eficiente possível, esquecido da pluralidade de sentidos do que fazia.

Emmanuel Lévinas sobreviveu ao holocausto e escreveu outro livro:  Totalidade e Infinito.  A ética não pode ser surgir de um pensamento total.  Se isso é verdade, então o mal se mimetiza até mesmo  no fundamento da dignidade humana como princípio fundamental do Direito do Trabalho, quando já é uma solução final - um esquecimento da pluralidade de sentidos do que um servidor público faz em defesa dessa dignidade.

No que afeta a Justiça do Trabalho e torna pertinente aí o pensamento de Lévinas, este sentido total e final de certeza e justiça está explícito na assertiva reproduzida pela Desembargadora Vólia Bomfim Cassar no acórdão do RO 797-82.2011.5.01.0051:

"A princípio, ao julgar tais causas, este Juízo se propôs a aplicar as regras do ônus da prova e muitas vezes deixou de reconhecer o vínculo de emprego pela falta de provas por parte do empregado quanto aos requisitos do art. 3º, da CLT. Porém, com o passar dos anos e a proliferação de 'cooperativas' que se sucediam nos postos de trabalho das tomadoras, mantendo-se sempre os mesmos 'cooperados' trabalhando, formou-se a convicção absoluta, indene de dúvida ou erro, de que a falta de apego dos trabalhadores à 'cooperativa' e da 'cooperativa' aos 'cooperados' indica que nunca no estabelecimento do liame entre eles ocorreu a intenção verdadeira de se associarem em um empreendimento cooperativista para a prestação de serviços com autonomia, a quem quer que deles necessite, mas sim o que houve foi o oportunismo de alguns aproveitadores da escassez de empregos para arrebanhar incautos trabalhadores e submetê-los a uma prestação de trabalho mal paga, sem férias, 13º salário, horas extras, fundo de garantia e seguro desemprego, propiciadores de lucros indecentes, fraudes a licitações e ao princípio do concurso público."

Esta totalidade e certeza como justiça face à experiência malfadada das cooperativas de trabalho se consubstanciou num alinhamento entre magistrados e procuradores em afirmar a existência de atividades laborativas que, por sua natureza, demandam estado de subordinação em processos de terceirização.  Este consenso logrou até mesmo uma lista de atividades com esta natureza subalterna, que se tornou virtualmente um índex inquisitorial para as cooperativas de trabalho.

A chave hermenêutica aqui é o uso da expressão natureza.  Considerada a pretensão de cientificidade do Direito, natureza se manifesta entre a normalidade e a norma do acontecer.  Natural é aquilo que, na vigência do ente para todos (realidade), dele é expresso.  É natural algo sujeito à determinação do seu acontecimento.  Enfim, o que é natural não pode ser desnaturado sem destruir-se como algo dizível diante de si (ob-jectum).  A natureza não pode ser desdita, senão re-significada na linguagem.  Ressignificação na linguagem é o sentido profundo dos arts. 2° e 3° da Lei 12.690/2012.  Mais do que legais, são dispositivos éticos por reabrirem para as cooperativas de trabalho uma outra possibilidade de justiça.  Convocam os magistrados trabalhistas a se voltarem, de novo, ao princípio de concreção da autogestão no mercado de serviços terceirizáveis.  Se o princípio da concreção se refere à ação construtiva da jurisprudência e ao trabalho criador da hermenêutica, os arts. 2º e 3º  programam a narrativa que condiciona essa ação construtiva por sentidos específicos. 

Em outras palavras, os arts. 2º e 3º  convocam os magistrados a suspenderem provisoriamente a convicção absoluta, indene de dúvida ou erro de que nunca haverá no mercado de serviços terceirizáveis a intenção verdadeira de um empreendimento cooperativista para a prestação de serviços com autonomia, a quem quer que deles necessite, mas sim que sempre haverá o oportunismo de alguns aproveitadores.

Com base no princípio do contrato-realidade que rege as relações empregatícias, o ato cooperativo de trabalho não poderia mesmo assumir cumulativamente todas as características do emprego.  Mas isso não impede que a cooperativa de trabalho, na vigência da Lei 12.690/2012, possa ter como objeto lícito a prestação de quaisquer serviços terceirizáveis.  O art. 5° da Lei 12.690/2012 não pode ser aplicado para reafirmar que as cooperativas de trabalho estão definitivamente afastadas dos mercados de serviços terceirizáveis. Quando o dispositivo diz que é vedado às cooperativas intermediarem mão de obra subordinada, à luz dos arts. 2° e 3° da mesma Lei, está dizendo que é lícita a intermediação de mão de obra autogestionária!

O que dizem os arts. 2° e 3° da Lei 12.690/2012?  Não existem prestações de serviço ligados à atividade-meio do tomador, cujo labor, por sua própria natureza, demanda execução em estado de subordinação em relação ao fornecedor dos serviços, senão num sentido pouco rigoroso de inexperiência.  Ainda que, pelo histórico das cooperativas existentes nos últimos 20 anos, se possa duvidar da existência de alguma experiência de autogestão bem sucedida dessas atividades laborativas.

Em que pese essa inexperiência, qualquer serviço terceirizável pode ser prestado sob o regime de heterogestão ou autogestão - vai depender da sua forma, porque isso foi concebido pela boa vontade refletida pela razão e assim foi positivado na Lei.  Heterogestão ou autogestão são modos distintos de processamento e organização do trabalho.  

Então, dizer que, no mercado de serviços terceirizáveis, cooperativas são natural e evidentemente fraudes, significa admitir que nesse mercado existe algo vil que torna o trabalhador incapaz da autogestão. Condena o trabalhador a dar lucro para patrão para que sua dignidade possa ser mais adequadamente administrada pelo Judiciário Especializado.  No mínimo, um paradoxo.

Fotos nús artísticos:  Igor Amelkovich

terça-feira, 6 de maio de 2014

Fabiane e o Cordeiro

O país foi dormir horrorizado ontem.  

Corria um boato perto da praia.  Crianças estavam sendo sequestradas para sacrifícios de magia negra.  Um horror ancestral.  Há séculos, bruxas e judeus são os suspeitos usuais.  Mas, como tantas mulheres no passado, Fabiane, uma pessoa diferente, esquisita por inspirar cuidados especiais (transtorno bipolar), ontem levou azar:  foi a bruxa da vez.  Linchada para salvar uma comunidade da desgraça, da magia negra.

Amanheci pensando em como o caldeirão da maga ainda pode estar fumegando em pleno Guarujá do séc. XXI.  Quem pôs a lenha na fogueira?  Pensei nos pastores das igrejas neopentecostais. Pensei eu em como  são afeitos às literalidades nos textos testamentais, mas  não identificam, nos seus ritos de exorcismo, Baal, Belial, Asmodeu... Numa conveniente interpretação de que os demônios bíblicos são subversões de deuses pagãos, os refiguram e atualizam como orixás, eguns ou outras entidades da umbanda.  Os demônios então deixaram os terreiros e as encruzilhadas para encarnarem nos pastores que vociferam ao microfone.  Eles são os "meus" bruxos do dia.

Mas, uma amiga postou no Facebook: "Esses imbecis desses Datenas e Sherazades da vida tb tem q ter 1 pingo de senso de responsabilidade antes de ficar vomitando aquele monte de merda q falam na TV!!!"  Flavinha, minha amiga, certamente entende que o "controle sociai" sobre a mídia é uma questão em aberto.  Então a bruxaria deixou os templos neopentecostais e em salas de imprensa foi fazer mal.  

Essa facilidade com que os demônios pulam de bruxa em bruxa nos dá um outro jeito de pensar tudo isso.  Remete ao outro suspeito de sempre: os judeus.

Hoje temos um certo pudor em apontarmos o dedo para judeus como culpados de sempre, porque três dedos apontarão imediatamente para nós mesmos: neonazista!  Mas, a gente não é nazista!  

Retratamos nazistas facilmente como monstros desumanos.  Mas, não é bem assim.  Os oficiais da SS nos campos de extermínio, em geral, eram pessoas comuns, em que pesem os milhões que lá sucumbiram.  É fácil ver a maldade nos oficiais da  SS: atuavam com entusiasmo sob a égide de um Estado autoritário, professavam uma ideologia avassaladora e desenvolveram uma tecnologia especialmente voltada para o genocídio.  

Mas, o que aconteceu em Ruanda coloca em xeque tal transparência do mal.  Em 1994, hutus massacraram tutsis a uma taxa de 7.000 por dia.  Mais mortos que os campos nazistas de extermínio foram capazes de produzir.  A situação era de anarquia, o discurso hostil não era muito mais  ideológico do que chamar os tutsis de baratas e os culpar por tudo de ruim e a tecnologia empregada... bem, pedras, paus, facões e fuzis deram conta.

Mas, há algo em comum em ambos os genocídios.  E isso não aparece nos testemunhos dos sobreviventes.  Está evidente nos depoimentos dos algozes.  Era um trabalho a ser feito e então era para ser feito da melhor forma possível.  Essa resposta recorrente à pergunta pelo porquê levanta suspeita de que todos nós somos humanos entre alemães e hutus no que fazemos. Em que sentido? Quando esquecemos dos múltiplos sentidos do que fazemos e não nos flagramos mais elegendo "nossos" judeus, "nossos" tutsis, "nossas" bruxas.

E por que é tão humano elegermos "nossos" judeus, tutsis e bruxas?  Porque, diante do horror, é muito mais difícil nos deixar flagrados em nossa nudez assustadora, do que agarrarmos alguém travestido, vestido como alguém que conosco não se identifica e jogarmos na vala comum do horror ao horror.

Trata-se de algo tão ancestral em nós, quanto as bruxas, os judeus e os deuses pagãos: o impulso de expiação.  O impulso da expiação é o impulso em afastar a desgraça de nós e de quem amamos.  É expiação, quando esse afastamento se dá por transferência da desgraça a substitutos que não amamos.  Se a desgraça recai a quem não amamos, a justiça está restabelecida.  Desgarrega-se a punição.  No afã de salvarmos a quem amamos, a inocência ou a culpa pessoal importam menos: dá-se a expiação.

A passagem bíblica em que o sacrifício por Abraão é desviado de Isaac para o cordeiro diz muito disso.  Todo filho de Abraão precisa saber que todo holocausto não é um ato intencional de malefício, mas é um ato de expiação. 

Fabiane ontem foi dada em holocausto.  Se formos procurar culpados pelo erro de julgamento e isso bastar para nos redimir e também a quem amamos, já estamos preparando um novo holocausto para daqui a pouco.

Mas, se pudermos também pensar que Fabiane é o cordeiro que foi dado em sacrifício pelos erros de julgamento, sua memória nos faz sentir no coração uma vergonha que dói na alma - nossa nudez assustadora nos aparece.  Essa dor pode ser tal a deitar nossos joelhos por terra e murmuraremos: Cordeiro, tem piedade de nós!   Nessa dor e nesse pedido de misericórdia, a esperança de redenção de toda humanidade nascerá de graça.  Então, nenhum outro holocausto será necessário.