segunda-feira, 26 de maio de 2014
terça-feira, 13 de maio de 2014
Um voto de esperança para as cooperativas de trabalho é pedir muito?
No livro Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt surpreendeu ao perceber o
mal absoluto encarnado num mero servidor público, cioso de seu trabalho e
aplicado em executá-lo de maneira mais eficiente possível, esquecido da
pluralidade de sentidos do que fazia.
Emmanuel
Lévinas sobreviveu ao holocausto e escreveu outro livro: Totalidade
e Infinito. A ética não pode ser
surgir de um pensamento total. Se isso é
verdade, então o mal se mimetiza até mesmo
no fundamento da dignidade humana como princípio fundamental do Direito
do Trabalho, quando já é uma solução final - um esquecimento da pluralidade de
sentidos do que um servidor público faz em defesa dessa dignidade.
No que
afeta a Justiça do Trabalho e torna pertinente aí o pensamento de Lévinas, este
sentido total e final de certeza e justiça está explícito na assertiva
reproduzida pela Desembargadora Vólia Bomfim Cassar no acórdão do RO
797-82.2011.5.01.0051:
"A princípio, ao julgar tais
causas, este Juízo se propôs a aplicar as regras do ônus da prova e muitas
vezes deixou de reconhecer o vínculo de emprego pela falta de provas por parte
do empregado quanto aos requisitos do art. 3º, da CLT. Porém, com o passar dos
anos e a proliferação de 'cooperativas' que se sucediam nos postos de trabalho
das tomadoras, mantendo-se sempre os mesmos 'cooperados' trabalhando, formou-se a convicção absoluta, indene de
dúvida ou erro, de que a falta de apego dos trabalhadores à 'cooperativa' e
da 'cooperativa' aos 'cooperados' indica que nunca no estabelecimento do liame
entre eles ocorreu a intenção verdadeira de se associarem em um empreendimento
cooperativista para a prestação de serviços com autonomia, a quem quer que
deles necessite, mas sim o que houve foi o oportunismo de alguns aproveitadores
da escassez de empregos para arrebanhar incautos trabalhadores e submetê-los a
uma prestação de trabalho mal paga, sem férias, 13º salário, horas extras,
fundo de garantia e seguro desemprego, propiciadores de lucros indecentes, fraudes
a licitações e ao princípio do concurso público."
Esta
totalidade e certeza como justiça face à experiência malfadada das cooperativas
de trabalho se consubstanciou num alinhamento entre magistrados e procuradores
em afirmar a existência de atividades laborativas que, por sua natureza,
demandam estado de subordinação em processos de terceirização. Este consenso logrou até mesmo uma lista de
atividades com esta natureza subalterna, que se tornou virtualmente um índex inquisitorial para as cooperativas
de trabalho.
A chave
hermenêutica aqui é o uso da expressão natureza. Considerada a pretensão de cientificidade do
Direito, natureza se manifesta entre a normalidade e a norma do acontecer. Natural é aquilo que, na vigência do ente
para todos (realidade), dele é expresso.
É natural algo sujeito à determinação do seu acontecimento. Enfim, o que é natural não pode ser
desnaturado sem destruir-se como algo dizível diante de si (ob-jectum). A natureza não pode ser desdita, senão
re-significada na linguagem. Ressignificação
na linguagem é o sentido profundo dos arts. 2° e 3° da Lei 12.690/2012. Mais do que legais, são dispositivos éticos
por reabrirem para as cooperativas de trabalho uma outra possibilidade de
justiça. Convocam os magistrados
trabalhistas a se voltarem, de novo, ao princípio de concreção da autogestão no
mercado de serviços terceirizáveis. Se o
princípio da concreção se refere à ação construtiva da jurisprudência e ao trabalho
criador da hermenêutica, os arts. 2º e 3º
programam a narrativa que condiciona essa ação construtiva por sentidos
específicos.
Em outras
palavras, os arts. 2º e 3º convocam os magistrados
a suspenderem provisoriamente a convicção absoluta, indene de dúvida ou erro de
que nunca haverá no mercado de
serviços terceirizáveis a intenção verdadeira de um empreendimento
cooperativista para a prestação de serviços com autonomia, a quem quer que
deles necessite, mas sim que sempre haverá o oportunismo de alguns
aproveitadores.
Com base no
princípio do contrato-realidade que rege as relações empregatícias, o ato
cooperativo de trabalho não poderia mesmo assumir cumulativamente todas as
características do emprego. Mas isso não
impede que a cooperativa de trabalho, na vigência da Lei 12.690/2012, possa ter
como objeto lícito a prestação de quaisquer serviços terceirizáveis. O art.
5° da Lei 12.690/2012 não pode ser aplicado para reafirmar que as cooperativas
de trabalho estão definitivamente afastadas dos mercados de serviços
terceirizáveis. Quando o dispositivo diz que é vedado às cooperativas
intermediarem mão de obra subordinada, à luz dos arts. 2° e 3° da mesma Lei,
está dizendo que é lícita a intermediação de mão de obra autogestionária!
O que dizem
os arts. 2° e 3° da Lei 12.690/2012? Não
existem prestações de serviço ligados à atividade-meio do tomador, cujo labor,
por sua própria natureza, demanda execução em estado de subordinação em relação
ao fornecedor dos serviços, senão num sentido pouco rigoroso de
inexperiência. Ainda que, pelo histórico
das cooperativas existentes nos últimos 20 anos, se possa duvidar da existência
de alguma experiência de autogestão bem sucedida dessas atividades laborativas.
Em que pese
essa inexperiência, qualquer serviço terceirizável pode ser prestado sob o
regime de heterogestão ou autogestão - vai depender da sua forma, porque isso
foi concebido pela boa vontade refletida pela razão e assim foi positivado na
Lei. Heterogestão ou autogestão são
modos distintos de processamento e organização do trabalho.
Então, dizer que, no mercado de serviços
terceirizáveis, cooperativas são natural
e evidentemente fraudes, significa
admitir que nesse mercado existe algo vil que torna o trabalhador incapaz da
autogestão. Condena
o trabalhador a dar lucro para patrão para que sua dignidade possa ser mais
adequadamente administrada pelo Judiciário Especializado. No mínimo, um paradoxo.
Fotos nús artísticos: Igor Amelkovich
Fotos nús artísticos: Igor Amelkovich
terça-feira, 6 de maio de 2014
Fabiane e o Cordeiro
O país
foi dormir horrorizado ontem.
Corria
um boato perto da praia. Crianças estavam sendo sequestradas para
sacrifícios de magia negra. Um horror ancestral. Há séculos, bruxas
e judeus são os suspeitos usuais. Mas, como tantas mulheres no passado,
Fabiane, uma pessoa diferente, esquisita por inspirar cuidados especiais
(transtorno bipolar), ontem levou azar: foi a bruxa da vez.
Linchada para salvar uma comunidade da desgraça, da magia negra.
Amanheci
pensando em como o caldeirão da maga ainda pode estar fumegando em pleno
Guarujá do séc. XXI. Quem pôs a lenha na fogueira? Pensei nos
pastores das igrejas neopentecostais. Pensei eu em como são afeitos às
literalidades nos textos testamentais, mas não identificam, nos seus
ritos de exorcismo, Baal, Belial, Asmodeu... Numa conveniente
interpretação de que os demônios bíblicos são subversões de deuses pagãos, os
refiguram e atualizam como orixás, eguns ou outras entidades da umbanda. Os demônios
então deixaram os terreiros e as encruzilhadas para encarnarem nos pastores que
vociferam ao microfone. Eles são os "meus" bruxos do dia.
Mas,
uma amiga postou no Facebook: "Esses
imbecis desses Datenas e Sherazades da vida tb tem q ter 1 pingo de senso de
responsabilidade antes de ficar vomitando aquele monte de merda q falam na
TV!!!" Flavinha, minha amiga, certamente entende que o
"controle sociai" sobre a mídia é uma questão em aberto. Então
a bruxaria deixou os templos neopentecostais e em salas de imprensa foi fazer
mal.
Essa
facilidade com que os demônios pulam de bruxa em bruxa nos dá um outro jeito de
pensar tudo isso. Remete ao outro suspeito de sempre: os judeus.
Hoje
temos um certo pudor em apontarmos o dedo para judeus como culpados de sempre,
porque três dedos apontarão imediatamente para nós mesmos: neonazista!
Mas, a gente não é nazista!
Retratamos
nazistas facilmente como monstros desumanos. Mas, não é bem assim.
Os oficiais da SS nos campos de extermínio, em geral, eram pessoas
comuns, em que pesem os milhões que lá sucumbiram. É fácil ver a maldade nos
oficiais da SS: atuavam com entusiasmo sob a égide de um Estado
autoritário, professavam uma ideologia avassaladora e desenvolveram uma tecnologia
especialmente voltada para o genocídio.
Mas, o
que aconteceu em Ruanda coloca em xeque tal transparência do mal. Em
1994, hutus massacraram tutsis a uma taxa de 7.000 por dia. Mais mortos
que os campos nazistas de extermínio foram capazes de produzir. A situação era de
anarquia, o discurso hostil não era muito mais ideológico do que chamar
os tutsis de baratas e os culpar por tudo de ruim e a tecnologia empregada...
bem, pedras, paus, facões e fuzis deram conta.
Mas, há
algo em comum em ambos os genocídios. E
isso não aparece nos testemunhos dos sobreviventes. Está evidente nos depoimentos dos algozes. Era um trabalho a ser feito e então era para
ser feito da melhor forma possível. Essa
resposta recorrente à pergunta pelo porquê levanta suspeita de que todos nós
somos humanos entre alemães e hutus no que fazemos. Em que sentido? Quando
esquecemos dos múltiplos sentidos do que fazemos e não nos flagramos mais
elegendo "nossos" judeus, "nossos" tutsis,
"nossas" bruxas.
E por
que é tão humano elegermos "nossos" judeus, tutsis e bruxas? Porque, diante do horror, é muito mais
difícil nos deixar flagrados em nossa nudez assustadora, do que agarrarmos alguém
travestido, vestido como alguém que conosco não se identifica e jogarmos na
vala comum do horror ao horror.
Trata-se
de algo tão ancestral em nós, quanto as bruxas, os judeus e os deuses pagãos: o
impulso de expiação. O impulso da
expiação é o impulso em afastar a desgraça de nós e de quem amamos. É expiação, quando esse afastamento se dá por
transferência da desgraça a substitutos que não amamos. Se a desgraça recai a quem não amamos, a
justiça está restabelecida.
Desgarrega-se a punição. No afã
de salvarmos a quem amamos, a inocência ou a culpa pessoal importam menos: dá-se a expiação.
A
passagem bíblica em que o sacrifício por Abraão é desviado de Isaac para o
cordeiro diz muito disso. Todo filho de
Abraão precisa saber que todo holocausto não é um ato intencional de malefício, mas é um ato de expiação.
Fabiane
ontem foi dada em holocausto. Se
formos procurar culpados pelo erro de julgamento e isso bastar para nos redimir
e também a quem amamos, já estamos preparando um novo holocausto para daqui a
pouco.
Mas, se pudermos também pensar que Fabiane é o cordeiro que foi dado em sacrifício pelos erros de julgamento, sua memória nos faz sentir no coração uma vergonha que dói na alma - nossa nudez assustadora nos aparece. Essa dor pode ser tal a deitar nossos joelhos por terra e murmuraremos: Cordeiro, tem piedade de nós! Nessa dor e nesse pedido de misericórdia, a esperança de redenção de toda humanidade nascerá de graça. Então, nenhum outro holocausto será necessário.
Mas, se pudermos também pensar que Fabiane é o cordeiro que foi dado em sacrifício pelos erros de julgamento, sua memória nos faz sentir no coração uma vergonha que dói na alma - nossa nudez assustadora nos aparece. Essa dor pode ser tal a deitar nossos joelhos por terra e murmuraremos: Cordeiro, tem piedade de nós! Nessa dor e nesse pedido de misericórdia, a esperança de redenção de toda humanidade nascerá de graça. Então, nenhum outro holocausto será necessário.
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