terça-feira, 8 de março de 2016

Impotência e Abandono

Quando vamos ao cinema para assistir um filme de terror chamado A Bruxa, esperamos acompanhar acontecimentos causados, ou pelo menos atribuídos a uma personagem vista, ou oculta.  Mas, para quem espera nesse que está em cartaz que a bruxa seja uma personagem, o filme não tem pé nem cabeça.  

O filme é uma dramatização de fragmentos documentais sobre a crença de puritanos em terras americanas acerca do bem e o mal, o discurso religioso corrente, testemunhos e confissões de bruxaria no sec. XVII.  A bruxa no filme não pode ser uma personagem, porque é uma entidade onipresente em contraste com a sensação de que Deus está ausente.

Mas, não se trata de um documentário.  Ao contrário, é uma obra de ficção que condensa todos os tempos e espaços dos fragmentos documentais em algumas noites de uma família num lar em que as coisas começam a desandar e, por isso, deixa de ser acolhedor para dar lugar ao terror. O recurso ficcional permite por mimese que o espectador vivencie esse terror presente para os personagens, em que pese toda a estranheza dos discursos extraídos dos documentos datados há mais de 300 anos em face do modo com que costumamos pensar nós no mundo.  Essa comunicação mimética é então o objeto antropológico pelo qual podemos apreender cognitivamente o que há de necessário no terror: a sensação cumulada de impotência e abandono.  



Essa tese antropológica acerca do terror pode ser testada numa correlação entre o que está acontecendo dentro e fora dos cinemas onde este filme está em cartaz.   Para isso, é interessante chamar a atenção para uma convergência etimológica entre a expressão bruxa e o verbo italiano bruciare, que significa queimar.   Essa convergência remete imediatamente ao clima inquisitorial que se instala entre os familiares aterrorizados, que se dividem entre suspeitas e recriminações recíprocas, conquanto, no lado de fora dos cinemas, há entre nós uma progressiva identificação da justiça com procedimentos inquisitoriais num momento em que nos sentimos impotentes diante da situação social, política e econômica que desanda e ainda nos sentimos moralmente órfãos.  Muitos de nós ainda podem não ter percebido, mas é possível que um terror esteja se instalando fora dos cinemas.

O problema ético do terror em bruxarias é exatamente este:  sempre achamos ter motivos suficientes, quando queimamos uma bruxa.  Mas o trágico em toda bruxa é que nunca sabemos de antemão quando as fogueiras se apagarão e o terror se extinguirá.