segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Proust (metaliteratura) - fragmento 1 de Combray (No caminho de Swann - Em busca do tempo perdido)

Recordando então o olhar que deixara  deter-se em mim durante a missa, azul como um raio de sol que houvesse atravessado o vitral de Gilberto, o Mau, disse eu comigo: "Mas sem dúvida ela reparou em mim!"  Julguei que lhe agradava, que ainda pensaria em mim depois que deixasse a igreja, que por causa de mim talvez se sentisse triste naquela mesma tarde, em Guermantes.  E em seguida me apaixonei por ela, pois se às vezes basta, para que nos enamoremos de uma mulher, que nos olhe com desprezo, como eu julgara tinha feito a filha de Swann, e que pensemos que ela nunca será nossa, também outras vezes basta que nos olhe com bondade, como fazia a senhora de Guermantes, e que pensemos que ela ainda poderá ser nossa.  Seus olhos azulavam como uma pervinca impossível de colher e que no entanto ela me houvesse dedicado; e o sol, ameaçado por uma nuvem, mas dardejando ainda com todo o vigor sobre a praça e a sacristia, dava uma carnação de gerânio aos tapetes vermelhos estendidos em terra para a solenidade e por onde avançava sorrindo a senhora de Guermantes, e acrescentava à lã dos mesmos um róseo aveludado, essa espécie de meiguice, de grave doçura na pompa e na alegria, que caracterizavam certas páginas do Lohengrin, certas pinturas de Carpaccio, e que fazem compreender que Baudelaire possa ter aplicado ao som do clarim o epíteto de delicioso.

Quantas vezes depois daquele dia, em meus passeios para os lados de Guermantes, não me pareceu ainda muito mais aflitivo que anteriormente não ter nenhum pendor para as letras e ver-me obrigado a renunciar de uma vez por todas a tornar-me um escritor famoso?  Tanto me fazia sofrer esse pesar, enquanto me punha a cismar sozinho, um pouco afastado dos outros, que meu espírito, espontaneamente, em uma espécie de inibição ante a dor, deixava por completo de pensar em versos, em romances, em um futuro poético que minha falta de talento me vedava esperar.  E então, muito fora de todas essas preocupações literárias e em nada ligados a ela, eis que de súbito um telhado, um reflexo de sol em uma pedra, o cheiro de um caminho, faziam-me parar pelo prazer único que me davam, e também porque pareciam ocultar, além do que eu via, alguma coisa que eles convidavam a colher e que me era impossível  descobrir, apesar dos esforços que fazia.  Como sentia que aquilo se achava neles, eu ali ficava imóvel, a olhar, a respirar, procurando ir com o pensamento além da imagem ou do odor.  E se tinha de correr atrás de meu avô para continuar o passeio, fazia-o de olhos fechados, atento em relembrar exatamente o perfil  do telhado ou o matiz da pedra, que, sem que eu soubesse o motivo, me haviam parecido replenos, prestes a entreabrir-se, a revelar-me aquilo que não eram mais que a cobertura.  Claro que impressões desse gênero não iam restituir-me  a perdida esperança de me tornar um dia escritor e poeta, pois estavam sempre ligadas a algum objeto particular desprovido de valor intelectual e sem nenhuma relação com qualquer verdade abstrata.  Mas, pelo menos me davam um prazer irreflexivo, a ilusão de uma espécie de fecundidade, e assim me distraíam da tristeza, da sensação de impotência que experimentava cada vez que me punha a buscar um assunto filosófico para uma grande obra literária.  Mas tão árduo era o dever de consciência que me impunham essas impressões da forma, de perfume ou de cor - procurar o que atrás delas se ocultava - que em seguida buscava escusas que me subtraíssem a tais esforços e me poupassem a tamanha fadiga.  Por felicidade, meus pais me chamavam, e eu via que naquele momento me faltava o sossego necessário para prosseguir satisfatoriamente minhas pesquisas, e que seria melhor deixá-las para quando estivesse em casa, e não me fatigar previamente sem resultado.  E já não me preocupava com aquela coisa desconhecida que se envolvia em uma forma ou em um perfume e agora estava quieta dentro de mim, pois a vinha trazendo para casa, protegida como esses peixes que eu carregava em um cesto de volta da pescaria, bem cobertos com uma camada de ervas que lhes conservava a frescura.  Uma vez em casa, punha-me a pensar em outra coisa, e assim iam se acumulando em meu espírito (como em meu quarto as flores que eu colhera durante os passeios ou os objetos que ganhara de presente) uma pedra onde brincava um reflexo, um telhado, um som de sino, um cheiro de folhas, imagens inúmeras e diversas debaixo das quais há muito tempo jaz morta a pressentida realidade, que me faltou vontade suficiente para descobrir. 

Um dia, no entanto - em que nosso passeio se prolongara muito mais do que habitualmente, e a meio-caminho, no regresso, já pelo fim da tarde, tivemos o prazer de encontrar o doutor Percepied, que passava a toda velocidade em seu carro e nos reconheceu, fazendo-nos embarcar com ele -, senti eu uma impressão desse gênero e não a abandonei sem tê-la aprofundado um pouco.  Havia-me acomodado junto ao cocheiro, íamos com o vento porque antes de chegar a Combray o doutor tinha de parar em casa de um doente, a cuja porta ficou combinado que o esperaríamos.  Na curva de um caminho, senti, de súbito, aquele prazer peculiar que não se assemelhava a nenhum outro ao avistar as duas torres de Martinville, batidas do sol poente e que o movimento de nosso carro e os ziguezagues do caminho faziam mudar de posição, e depois a torre de Vieuxvicq que, separada das primeiras por uma colina e um vale, e situada ao longe em um planalto mais elevado, parecia no entanto bem próxima delas.

Verificando, observando a forma de sua agulha, o deslocamento de suas linhas, o ensolado de sua superfície, eu sentia que não ia até o fundo de minha impressão, que alguma coisa havia atrás daquele movimento, atrás daquela claridade, alguma coisa que elas pareciam conter e ocultar ao mesmo tempo.

Tão afastadas se encontravam as torres e tão pouco me parecia aproximar-nos delas que fiquei atônito quando paramos, instantes depois, diante da igreja de Martinville.  Ignorava o motivo do prazer que tivera ao avistá-las no horizonte, e a obrigação de procurar desvendá-lo me parecia muito penosa; tinha vontade de guardar de reserva na cabeça aquelas linhas que se moviam ao sol e não mais pensar nelas por enquanto.  E é provável que, se o fizesse, as duas torres teriam ido reunir-se para sempre a tantas árvores, telhados, perfumes, sons, que eu diferenciara dos outros por causa daquele obscuro prazer que me haviam proporcionado e que eu nunca aprofundara.  Desci para conversar com meus pais enquanto esperávamos pelo doutor.  Depois prosseguimos, retornei a meu lugar na boleia, voltei a cabeça para ver de novo as torres, que um pouco mais tarde avistei pela última vez na volta de um caminho.  Como o cocheiro não parecia disposto a conversar e mal respondera a minhas perguntas, vi-me forçado, na falta de outra companhia, a recorrer a minha, tentando relembrar minhas torres.  E logo, como uma casca, romperam-se suas linhas e superfícies, mostrando-me um pouco do que ali se achava oculto, e tive um pensamento que não existia para mim um momento antes, que se formulou em palavras em minha cabeça, e isso de tal forma aumentou o prazer  que havia pouco me dera a vista das torres que, tomado de uma espécie de embriaguez, não pude mais pensar em outra coisa.  Naquele momento, e como já estivéssemos longe de Martinville, voltei a cabeça e avistei-as de novo, completamente negras desta vez, pois o sol já se escondera.  De quando em quando as voltas da estrada mas ocultavam, depois elas se mostraram uma última vez e por fim não mais pude vê-las.

Sem confessar-me que aquilo que estava oculto atrás das torres de Martinville devia ser algo assim como uma bela frase, pois que aparecera sob a forma de palavras que me causavam prazer, pedi lápis e papel ao doutor e, para aliviar a consciência e obedecer a meu entusiasmo, compus, apesar dos solavancos do carro, o pequeno trecho seguinte que encontrei depois e no qual fiz apenas algumas ligeiras modificações:

"Sozinhas, erguendo-se do nível da planície e como perdidas em campo raso, subiam para o céu as duas torres de Martinville.  Em breve vimos três: vindo colocar-se a sua frente em uma volta atrevida, reunira-se a elas uma torre retardatária, a de Vieuxvicq.  Os minutos passavam, íamos depressa e no entanto as três torres estavam sempre ao longe, a nossa frente, como três pássaros pousados na planície, imóveis, e que a gente divisa ao sol.  Depois a torre de Vieuxvicq se afastou, marcou suas distâncias, e as torres de Martinville ficaram sós, alumiadas pela luz do poente que, mesmo àquela distância, eu via brincar e sorrir em suas telhas.  Demoráramos tanto em aproximar-nos das torres que eu ainda pensava no tempo que nos faltava para atingi-las quando de repente o carro, depois de dar uma volta, nos depôs a seus pés; e tão rudemente se haviam lançado elas de encontro ao carro que mal se teve tempo de parar para não esbarrarmos no pórtico.  Prosseguimos viagem; fazia pouco que deixáramos Martinville e que a aldeia desaparecera, depois de nos ter acompanhado alguns segundos e ainda suas torres e a de Vieuxvicq, ficando sozinhas no horizonte a ver-nos fugir, agitavam em sinal de despedida seus cimos ensolarados.  Às vezes uma se afastava para que as outras pudessem avistar-nos um instante ainda; mas a estrada mudou de direção, delas voltearam na luz como três gonzos de ouro e desapareceram de minha vista.  Mas um pouco mais tarde, já perto de Combray e depois que o sol se sumira, avistamo-las uma última vez, de muito longe, não parecendo mais que três flores pintadas sobre o céu, acima da linha baixa dos campos. Faziam-me também pensar nas três meninas de uma legenda, abandonadas em uma solidão onde já tombava a treva; e enquanto nos afastávamos a galope, via-as timidamente procurar o caminho e, depois de algumas indecisas oscilações de suas nobres silhuetas, apertarem-se umas contra as outras, deslizarem uma atrás da outra, formarem sobre o céu ainda róseo nada mais que uma única forma negra, encantadora e resignada, e desaparecerem dentro da noite."

Jamais tornei a pensar em tal página, mas naquele instante, ao terminar de escrevê-la, na ponta do assento onde o cocheiro do doutor costumava colocar um cesto com as aves que comprara no mercado de Martinville, achei-me tão feliz, sentia que ela me havia desembaraçado tão perfeitamente daquelas torres e do que ocultavam atrás de si, que, como se fosse eu próprio uma galinha e acabasse de pôr um ovo, pus-me a cantar a plenos pulmões.

(tradução de Mario Quintana)



segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Luiz Felipe Pondé: A esperança de Pandora


No dia 28 de dezembro, a Folha de São Paulo nos brindou antecipadamente o Ano Novo com um pequeno ensaio do Pondé.  


A esperança é o último dos "males" escondidos na caixa de Pandora. Mas quem é Pandora?

Pandora é a mulher criada por Zeus para nos castigar. Pandora é uma espécie de Eva grega, com a diferença de que o culpado por ela ter sido criada para nos fazer sofrer é um "homem": Prometeu.

Sabemos que Prometeu foi aquele que nos deu a "técnica do fogo", contra a vontade de Zeus. Este, para castigar Prometeu, o teria pregado a uma pedra para ter seu fígado comido por uma ave pela eternidade. Zeus parecia acreditar que com essa "técnica do fogo" nós faríamos bobagens. Mary Shelley, no século 19, chamará seu doutor Frankenstein de "o Prometeu Moderno", numa referência clara à desmedida ("hybris") técnica do homem moderno, representada pelo médico Frankenstein, que "cria um homem", se igualando a Deus.


Na Grécia, portanto, já apareceria esse "medo" de querermos saber o que os deuses sabem. E que sofreríamos com isso. Mary Shelley, a romântica, revela o medo da ciência como ferramenta de desmedida. Esse assunto (medo da ciência) dá o que falar, mas não vou falar dele hoje. Entretanto, não tenho dúvida de que podemos arrebentar nossa vida e o mundo com essa marca de sermos seres "sem medida".

Mas voltemos a Pandora. Pandora é criada com um traço de personalidade: ela era uma curiosa. Sabendo disso, quando Zeus dá para ela a caixa e diz para não abri-la, sabe que ela o fará. E, quando o fizer, deixará escapar as misérias que atormentarão o mundo. A curiosidade de Pandora também é uma face da desmedida. Mas, pergunto eu: até onde podemos ser curiosos sem nos causar problemas? Ninguém sabe. Muita curiosidade mata, mas é sinal de vida. Pouca curiosidade faz de você uma pessoa mais cuidadosa, mas, talvez, sem vida. Um pouco de sangue nos olhos é necessário para gozar a vida?

A curiosidade de Pandora, assim como a técnica, são faces da mesma desmedida. Esse é nosso destino, segundo a visão trágica. Acho que os gregos tinham razão. Sempre andaremos em círculos, num eterno retorno do mesmo destino sem medida. Não há avanço acumulativo na história, pois o "avanço" pode ser, ele mesmo, a desmedida.

A ideia de um avanço acumulativo da história humana ou progresso em direção a um fim que revelará o sentido último da história e da vida (a "escatologia" em teologia) é fruto do mundo bíblico. Por isso a esperança como traço humano é tão diferente se compararmos Jerusalém com Atenas.

Na terra de Israel, a esperança é, justamente, o que sustenta a vida em tensão para o futuro. Um futuro que dará sentido a tudo que vivemos. Impossível não deduzir daí um sentido para a história e para a vida.
Na terra de Pandora, a esperança é um dos males que nos faz sofrer. Como a esperança pode ser um mal?

Não estou aqui pensando nesse conceito pseudopolítico e picareta conhecido como "utopia", que é, sim, um mal. Mas, como viver sem esperança? Mesmo Viktor Frankl, psiquiatra sobrevivente do Holocausto, dizia que a experiência de sentido (e a esperança é irmã do sentido) era essencial para suportar o espaço por excelência onde os judeus viveram a "utopia nazista", os campos de extermínio.
No mundo trágico, "ter esperança" é uma forma da desmedida. Eis a tragédia numa de suas representações máximas. Se, por um lado, sem esperança somos seres destruídos em nossa espinha dorsal espiritual e psicológica, por outro, "ter esperança" é uma profunda ilusão com relação ao destino humano. A esperança é uma forma de tortura justamente porque não há nenhuma esperança. Como dizia o oráculo de Delfos: somos mortais.

Vemos aqui como não se pode dizer que desmedida e pecado sejam a mesma coisa. A esperança no mundo bíblico nos aproxima de Deus e o pecado nos afasta Dele. No mundo grego, a esperança nos torna ainda mais vítimas de nosso destino sem saída e, assim, se revela como mais uma forma de castigo divino.

Afora a religião ou a filosofia, talvez a esperança seja mais uma questão de "índole", como diria nosso antropólogo Roberto DaMatta. Alguns são filhos da esperança, outros, do desespero. Enfim, bom 2016.

Fonte:

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2015/12/1723454-a-esperanca-de-pandora.shtml?cmpid=compfb#_=_